Caros amigos de chifres,
O post de hoje do Blog Meus Chifres continua em tom de comemoração, desta vez, religiosa pois neste dia 25/04, dia de São Marcos, é o dia do corno!
Embora seja um festejo de tradição profana, o evento já teve a devida liturgia católica como podemos conferir no texto do texto a seguir, publicado pela Secretaria Regional da Educação e Cultura da Ilha dos Açores, assinado por Manuel Tomás Gaspar da Costa do Núcleo Cultural da Horta, dando conta da recomendação divina para a continuidade da comemoração do nosso divino dia.
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O dia dos cornos na ilha do Pico
Dizia-se, quando era rapaz,
que na ilha do Pico ninguém nascia no dia 25 de
Abril.
Ainda a data não tinha
o significado que a Revolução dos Cravos lhe deu, como
dia marcante do nascimento
da democracia em Portugal.
E se alguém nascesse mesmo
nesse dia, era mudada a data
no registo, para o dia seguinte.
Os tempos mudaram e também o 25 de Abril, como o dia
dos cornos, também perdeu a
sua pujança e apenas algum
valente mais saudoso ou cioso das velhas tradições teima
em mantê-lo, mas pouco ou
quase nada já damos pela sua
existência.
Se em São Mateus, como reza
a tradição e alguns registos o
confirmam, embora o façam
em forma de ficção, havia alguma ligação entre o profano
e o religioso, nos outros lugares não consta que houvesse
qualquer ligação do dia dos
cornos com a celebração do
dia de São Marcos.
Depois de muito ter ouvido
falar, na escola, na festa dos
cornos, resolvi, na companhia
de um colega, ir assistir à festa.
Com algum receio, colocamo-nos atrás de uma parede e através dos buracos da mesma ficámos a ver todo o espectáculo. Já
estava montado o material da
fogueira para a folia. No meio
do largo da «pedreira», erguia-
-se um monte de lenha seca
e alguma verdura e em cima
uma considerável quantidade de cornos de vaca e de boi.
Um pau enorme e enfeitado
era encimado por uma fantástica coroa, um monumental par de cornos de um boi
que terá feito a inveja a muita
vaca mais atrevida daqueles
tempos. Havia uma coroa,
feita com umas folhas de
louro e alguns cornos, colocada em cima de uma mesa,
onde também estavam algumas garrafas de aguardente.
Começou a festa. Dois homens, recentemente casados, presidiam à cerimónia.
O dia dos cornos na ilha do Pico
Largaram o fogo e foram
ateando a fogueira. O barulho, ou melhor, a gritaria, ia
acontecendo. E quando passava algum homem casado, obrigavam-no a parar, a
deixar-se coroar e depois era
compensado com um copo
de aguardente.
Lembro-me
de ver um tio meu a chegar,
ser obrigado a descer da bicicleta e como quisessem
coroá-lo e ele não estivesse
de acordo, sempre agarrado
à bicicleta, deu um grande
pontapé na fogueira, o que
fez com as guardas se abrissem e assim lá fugiu ele, ladeira abaixo, mas sem levar
com o par de galhadura que
o esperava.
Em contrapartida, um conhecido figurante
do lugar, amante profundo da
aguardente e muito experiente em matéria de cornos e coroações frequentes e afamadas, estava sempre disposto,
à falta de clientes, a ser coroado, pois tal lhe garantia mais
um copinho de aguardente.
Anoitecia, embora já fosse
Abril adiantado, e tinha de
regressar a casa. Ainda vi os
mordomos da festa carregarem as cinzas para dentro de
umas vasilhas e colocá-las em
cima de um carrinho de mão.
No dia seguinte, disseram-me
que tinha havido procissão
e do lado de dentro de cada
portão de homem casado tinha sido depositado um pouco da cinza dos cornos, para
que nenhum se esquecesse da
sua condição.
Recordo a zaragata que o professor fez no dia
seguinte, quando chegámos
à escola, porque vira algum
de nós na procissão das cinzas
e isso foi muito mau, porque
a vara de castanheiro, guardada debaixo da secretária, saiu
fora e certo desgraçado levou
pela alma da caixa velha.
Vou à procura de registos
destas festas, mas a melhor
e mais pitoresca que encontro é a de Raúl Brandão, em
Ilhas Desconhecidas. Apesar
de a data dedicada ao Pico
ser a do dia 26 de Julho, alguém lhe terá contado a história e depois completou-a
com o recurso ao coronel
Afonso Chaves e à sua obra,
As festas de São Marcos em
algumas ilhas dos Açores
e a sua origem provável.
O livro foi publicado em
1926 e em nota de rodapé, citando Afonso Chaves, diz-se
que «Hoje em dia já não é
grande o número de localidades onde se celebra esta
festa, sendo evidente que
o brilhantismo dela depende
principalmente dos dirigentes da confraria.»
Atribui-se a origem da festa
dos cornos à colonização flamenga e assim se explicaria
que fosse no antigo distrito da Horta onde pontuava
a festa.
Há dias confrontei
um homem de 90 anos que
não fazia a menor ideia destas festividades, pois sempre
tendo residido na freguesia
de São Caetano, contígua a
São Mateus, onde se celebrava com entusiasmo a festa
dos cornos, não se lembrava
de alguma vez tal ter acontecido lá pelos seus lados.
Em São Mateus, no interessante e vivo relato de Renato
Ávila, em Recios, edição de
2004, é-nos narrado, pormenorizadamente, a festa
dos cornos, em tarde de São
Marcos e com a participação
alegre da rapaziada da escola, coisa que não vi acontecer
na minha freguesia e no meu
lugar das Sete Cidades.
É desse livro, esta saborosa prosa:
«– Ó corno, ó irmão! Salta cá
p’ra fora! – se os tens grandes,
manda alargar a porta! – Não
t’escondas qu’eles saem-te
p’lo telhado!
Os batedores, os casados
mais novos, adiantavam-se
na mira de algum fugitivo.
E a miudagem delirava, tocava com toda a força ferrinhos, tambores, latas... tudo
o que fizesse barulho.»
Em tempos remotos, diz-se que
teria havido a permissão de
entrada na igreja, onde a coroa
dos cornos era benzida com água benta, mas já não encontrei ninguém que me pudesse
corroborar nesta hipótese.
E foi assim que antes do 25
de Abril em Portugal, já essa
data era celebrada no Pico,
mas por outras razões.
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Ainda encontramos outras referências ao festejo, em fontes não oficiais, mas igualmente creditáveis, extraídas de livros de pesquisadores lusitanos que foram investigar a origem do festejo nos contam passagens interesantes, como a do ano de 1974, quando um padre tentou proibir a realização do festejo e acabou recebendo um recado de Deus para a manutenção do ritual do festejo de cornos da região. Vejamos:
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O Dia de cornos
No século passado e ainda neste século, em várias freguesias do Pico e principalmente em S. Mateus, era muito festejada a Festa de Cornos, no dia de S. Marcos, que se celebrava a vinte cinco de Abril.
O Terreiro do Paço de S. Mateus era o ponto de partida para os festejos profanos e religiosos daquela freguesia. Dali saíam para a igreja, em procissão, e levavam uma coroa com um corno na ponta. Na igreja havia uma série de exéquias e a principal era a bênção da coroa com que se coroava depois os homens casados.
Um certo ano, o padre não aceitou que se continuasse a fazer na igreja a festa do Dia de Cornos e, a tempo, disse do púlpito, para que todos o escutassem:
— Este ano, no dia de S. Marcos, está proibido trazer a coroa de cornos para a igreja e fazer, cá dentro, qualquer outra celebração religiosa relacionada com essa festa.
O povo teve que aceitar a decisão. Mas a festa de Cornos era muito divertida e, chegado o dia vinte cinco de Abril, os homens juntaram-se no Terreiro do Paço com o mordomo e o escrivão da festa para irem, ao menos, correr a freguesia e coroar todos os casados mesmo que não fosse com uma coroa benta.
Entretanto o padre e alguns fiéis tinham ido para a igreja para a festa de S. Marcos, já purificada e livre de sacrilégios. Lá dentro rezavam tranquilamente de porta aberta para quem quisesse entrar. Nisto, uma rês entrou na igreja e foi ajoelhar ao pé do padre para que fizessem os rituais que eram habituais na Festa de Cornos.
Todos ficaram de boca aberta, pasmados, e viram naquilo um aviso de que a Festa de Cornos era bem vista pela Providência. Isto é verdade como eu estar aqui sentado neste banco. Mas o padre manteve a sua opinião. A Festa de Cornos passou a ser apenas profana, mas ganhou ainda mais brilho. Alguns homens iam com búzios, apitos e assobios pelas ruas, fazendo uma barulheira medonha, enquanto um incensava, com raspa de corno sobre brasas, os homens casados ou cornos que encontravam. Estes ajoelhavam no chão e eram coroados. O escrivão riscava o nome no rol e lá continuava a procissão para que todos os casados da freguesa fossem coroados. Os solteiros, chamados burros, não podiam ser coroados e ficavam a apreciar a festa até serem também casados.
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Como podemos perceber, os chifres são dádivas divinas que devemos cultuar, comemorar e agradecer.
Feliz dia de Cornos!
INFORMAÇÃO ÚTIL
FREGUESIA
DE SÃO MATEUS
LOCALIZAÇÃO:
Concelho da Madalena,
ilha do Pico.
COORDENADAS GPS:
38°25’59”N – 28°27’31”O
OUTROS LOCAIS
DE INTERESSE NAS
REDONDEZAS:
Igreja de São Mateus
(séc. XIX); Ermida de
N. S. da Conceição (séc.
XVIII); Império do
Espírito Santo (1914);
porto de São Mateus
(rampa de varadouro e
edifícios relacionados
com a caça à baleia, séc.
XIX–XX).
https://www.cresacor.pt/media/files/13_Artigo_O_dia_dos_cornos_na_ilha_do_Pico.pdf
https://lendarium.org/pt/apl/milagres/o-dia-de-cornos/
FURTADO-BRUM, Ângela. Açores: Lendas e outras histórias. Ponta Delgada, Ribeiro & Caravana editores, 1999, p.220
foto mais emblemática que a do garotão, no topo da pagina, não há. reflete o estado de espírito do dono do blog. ;-P
ResponderExcluirSim, sim...sem dúvida...rs
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